Quanto o sistema educacional brasileiro foi influenciado por Paulo Freire?

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Ninguém aprende com o ensino educacional brasileiro. Mas o que torna ele dessa forma?

O Brasil investe cerca de 6% de seu PIB na educação, sendo um investimento até superior a países desenvolvidos. Brasileiro vive síndrome de Gabriela: “Eu nasci assim, eu cresci assim e sou mesmo assim, vou ser sempre assim”

Há um consenso na sociedade brasileira: A educação nacional é de baixa qualidade. Esse consenso não surge apenas dos dados técnicos que são fornecidos pelo Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) ou então das metas nunca alcançadas pelo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). É um consenso sociocultural, de vivência própria de cada brasileiro, todos nós passamos pelo sistema educacional nacional e sentimos na pele essa dor. Porém, esse consenso só chega até esse ponto: O de afirmar que a educação é ruim.

O que sempre me inquietou é essa acomodação da sociedade em reconhecer a instituição educacional de baixa qualidade, saber que o serviço prestado pela educação a qualquer sociedade é fundamental, mas não questionar o que realmente torna esse sistema tão rígido, que ao invés de valorizar as habilidades dos cidadãos que estão formando, procura por enquadrar todos em uma mesma forma, como uma produção industrial do século XIX. Me faz lembrar quando o professor, hoje meu maior inspirador pela busca de uma educação humanizada, José Pacheco, refere-se a isso como “síndrome de Gabriela”: “Eu nasci assim, eu cresci assim e sou mesmo assim, vou ser sempre assim”.

O Brasil investe cerca de 6% de seu PIB na educação, sendo um investimento até superior a países desenvolvidos. E apesar de 2021 ter sido o ano com menor investimento na educação básica pelo MEC desde de 2010, ainda assim o investimento é maior do que em muitos países que figuram à frente do Brasil no ranking do Pisa. Como então os professores brasileiros recebem tão pouco, relativo aos professores desses mesmos países? Por que há tanta disparidade no investimento de recursos versus o resultado? E por que vemos tantas estruturas precárias nas escolas públicas? É costume da sociedade responder essas perguntas com uma palavra chave: Corrupção. Mas isso continua a ser uma resposta acomodada, bastante discrepante com a realidade e história brasileira, na maior parte das vezes moralista e que busca remediar o sintoma, não curar o problema.

Há também, como apresentado por Machado de Assis e bastante mencionado pelo mestre Ariano Suassuna, a influência causada pela diferença do “Brasil real”, com o “Brasil oficial”. Para eles, o Brasil “oficial” é composto pela classe dominante, mantida aos privilégios, totalmente descolada da realidade e com bastante resistência à abertura das igualdades de oportunidades para o Brasil “real”, este composto pelo povo,  representado pelas classes dominadas, como a burguesia emergente e os camponeses pobres do período da revolução francesa, ou então os micros, pequenos e médios empresários e a classe trabalhadora dos nossos tempos. Essa interpretação é muito semelhante, porém apresentada com outra brincadeira semântica, descrita entre o Brasil com “s” e o “Brazil” com “z”, referenciado na música “Querelas do Brasil”, composta pelo poeta Aldir Blanc e interpretada pela saudosa cantora Elis Regina, quando diz que “o Brazil não conhece o Brasil, o Brazil tá matando o Brasil”. O que isso demonstra, é que o problema não é por falta de recursos, mas por incapacidade de gestão e resistência de uma classe dominante infecunda.

Eu estudei todo meu período educacional na escola pública, do pré fundamental até completar o ensino médio. Presenciei as fragilidades que o ensino público brasileiro tem, mesmo estudando em um colégio estadual no qual era, e ainda é, bastante requisitado, tornava-se bastante notório que o objetivo buscado (a aprendizagem) era praticamente nulo. Desde as fragilidades mais fáceis de notar, como o descuido do patrimônio público, a falta de materiais adequados, as grades trazendo uma sensação de prisão, salas de aulas enfileiradas e padronizadas, a falta de salários dignos aos professores, a dificuldade dos professores em inovar, as vezes por não existir recurso, às vezes por não existir liberdade criativa, a invisibilidade de funcionários essenciais para a rotina do colégio, o sistema quadrado, autoritário, inibidor do pensamento crítico, regimental, uniformizado e que tinha como instrumento a aprendizagem de decorar e repetir.

Até as fragilidades mais complexas e de identificação mais ampla, como quando percebi, em convívio com primos e amigos que estudavam em outros colégios, que nenhuma escola é em sua essência igual a outra, não existem duas ou mais escolas idênticas. Mesmo que todas as escolas do mundo trabalhem com o mesmo sistema de ensino, toda escola tem sua comunidade escolar, sua cultura, seus comportamentos, seus costumes, suas histórias e suas demandas, que fazem cada uma ser diferente da outra. São pessoas diferentes e em cada uma delas existe uma consciência. Reconhecer que a essência de cada comunidade escolar são as pessoas que nela habitam, e não seu sistema de aprendizagem, será o primeiro passo para a desvinculação do atual sistema educacional.

Foi então que eu entendi o porquê dos professores encontrarem dificuldades em ensinar o mesmo conteúdo para todos os alunos. Se nem em uma sala com 30 alunos havia unanimidade quanto à aprendizagem dos educandos, como poderia haver um sistema de apostilas para aprendizagem de todas as escolas da rede pública? Por que a mesma aula aplicada a 30 alunos, funcionava bem para um terço da turma, outro terço entendia mais ou menos bem e o terço final não entendia nada? Isso sendo bastante razoável com as proporções reais. Por que a insistência em algo que deu errado, está dando errado e que já provou que continuará dando errado?

Sala de aula em 2022.

 

 O primeiro obstáculo é a própria cultura que o professor vivenciou, porque antes de qualquer professor passar a exercer este posto, ele passou por mais de 12 anos dentro de outras salas de aulas, recebendo o mesmo modelo de ensino, engessado, quadrado e autoritário, que quando sua vez chega, mesmo muito bem intencionado e dedicado a mudança, encontra barreiras e apenas replica tudo o que vivenciou, sustentando assim uma aprendizagem por imitação e repetição.

Foi só quando entrei na universidade, que percebi que as fragilidades eram ainda mais graves do que eu pensava. Percebi que haviam diversos mecanismos de gestão que poderiam ser agregados às instituições de ensino, por objetivo a uma organização horizontal, mais democrática, buscando maior compreensão das demandas da comunidade escolar. Percebi que há diversos obstáculos burocráticos que impedem a autonomia das escolas, como a prerrogativa do poder executivo municipal, às vezes até repassando a responsabilidade para o poder legislativo municipal, através de vereadores, em indicar um diretor a cada colégio de sua região correspondente. Percebi também que há inúmeras formas de aprendizagem, que existem as pessoas que aprendem de forma cinestésica, outras de forma auditiva e outras pela leitura. Percebi que não existe apenas a inteligência cognitiva ou lógico-matemática, mas também outras múltiplas inteligências, como a interpessoal, a intrapessoal, a existencial, a espacial, a naturalista, a musical, a linguística e assim por diante.

Mas se tudo isso estava sendo exposto para mim, por que não me preocupar em alcançar esses objetivos na educação? Como deixar de ser só mais um acomodado com a situação? Foi aí que precisei buscar especializações na área, livros, artigos, autores, autoridades e materiais que teriam a possibilidade de me mostrar como tudo isso começou. Quando começou a escola? Quando surgiu esse modelo? Quais foram os primeiros a debater sobre o tema? Por que ele continua assim?

 

Escola do século XIX

A história da educação, propriamente dita, se inicia a partir da escrita cuneiforme, desenvolvida pelos sumérios por volta de 4000 a.C. Em 387 a.C. Platão criou um grupo onde se debatia filosofia e matemática, sendo assim uma espécie de “escola”. Em famílias ricas no século 4 a.C., era bastante comum contratar o serviços de um “preceptor”, como eram chamados os antigos “professores particulares”, para orientar seus filhos. Um caso bastante famoso é do filosofo Aristóteles, quando foi preceptor de Alexandre, o Grande.

Aparentemente, as primeiras escolas com moldes atuais que surgiram no mundo, foram fundadas na Europa do século XII. No Brasil, foram originadas pelos jesuítas, em meados do século XVI. Já o modelo vigente com aspecto militar, uniformizado, industrial, de salas de aulas enfileiradas, horários para poder falar, para poder levantar, para poder ir ao banheiro, para poder conversar com o colega, chegou no início do século XVIII, após a primeira revolução industrial e importado da antiga Prússia. Vivemos no século XXI, período da 4ª revolução industrial: A revolução tecnológica, na qual está sendo marcada pela convergência de tecnologias digitais, físicas e biológicas. A indústria manual da primeira revolução, no século XVIII, se transformou na indústria 4.0 do século XXI, onde o objetivo é a automatização total das máquinas, operadas integralmente por inteligência artificial.

A clínica médica do século passado já não é a mesma do século atual, as pesquisas e as novas ferramentas tecnológicas trouxeram novos métodos e exames, que por consequência trouxeram mais exatidão ao prognóstico. As operações jurídicas hoje são operadas e armazenadas em sua grande maioria por computadores, quando no século passado eram precisos grandes galpões para apenas manter guardadas. A tecnologia fez o telefone residencial de fio, passar a ser um aparelho individual de bolso, onde não só existe o serviço da telefonia, mas também de outras tantas ferramentas que hoje cabem somente neste aparelho, como relógio, câmera, calendário, serviço de mensagem instantânea, etc.

Fez a carroça movida a um cavalo, virar um super automóvel com mais de 1000 cavalos de potência. Nem uma bola de futebol, os equipamentos usados pelos atletas, são os mesmos que os criados a mais de um século atrás. Já a sala de aula, do período da primeira revolução industrial, continua sendo o modelo das salas de aula de hoje, com todos os alunos em linha industrial, olhando para a nuca do colega enquanto tem aula e com pouquíssima interação social. Lembrando muito o filme “Tempos Modernos”, uma crítica de Charlie Chaplin já no ano de 1936, ou então o clipe do Pink Floyd, Another Brick In The Wall, crítica de 1979.

Tempos Modernos, Filme de 1936.

São inúmeros os filósofos e sociólogos que debateram o tema durante todos esses séculos de existência da escola. Primeiro Immanuel Kant e Friedrich Hegel trouxeram, através da escola filosófica idealista, a importância das instituições de ensino no desenvolvimento individual de cada cidadão. Sem levar em conta o contexto social que ela engloba, resumindo a uma corrente filosófica meramente individualista, mas sendo o primeiro passo para a consciência coletiva de que a instituição escolar seja desenvolvedora do ser humano.

Mais tarde, surgiu Émile Durkheim, com sua tese identificando que a importância da escola para a sociedade, está justamente na interação social existente entre elas, de forma intrínseca, resultando como papel moralizador, ao oferecer valores, comportamentos e regras para o desenvolvimento da sociedade. Já na década de 60, começaram a surgir os primeiros ensaios sobre a sociologia da educação, com a escola de Frankfurt, os filósofos Pierre Bourdieu, Michel Foucault e tantos outros que contribuíram com a percepção de uma escola humanizada.

Porém, como o Brasil vivia uma ditadura militar quando esses filósofos surgiram, o debate proposto por eles só foi introduzido no país após a redemocratização, o que causou um grande atraso na educação nacional. Também devo mencionar os pais da educação moderna, que hoje suas teses e práticas orientam os pedagogos de toda parte do planeta, como Jean Piaget, Maria Montessori e Lev Vygotsky (outro filósofo que sofreu resistência durante o período da ditadura militar no Brasil, pelo fato de ser russo).

Jean Piaget. Reprodução: Wikipédia

No Brasil, houve grandes contribuições através de seus maiores educadores, como Paulo Freire, Cecília Meireles, Anísio Teixeira, Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro, Maria Nilde Mascellani, Dermeval Saviani e tantos outros, que mesmo sofrendo com as perseguições e censuras da ditadura militar, conseguiram fazer do Brasil um celeiro intelectual no campo da educação para o mundo.

Há também as contribuições recentes, como da professora Jaqueline Moll e os professores Zilda e Almir Del Prette, que me introduziram a um novo mundo, o das habilidades socioemocionais. Ler todos eles, além de me encantar e me enriquecer de informação, me fez crer que existe sim uma construção social voltada à melhora da educação, que houve inúmeras contribuições filosóficas e teóricas para o desenvolvimento de uma educação humanizada e que na vastidão do universo, essa rocha flutuante no espaço a qual vivemos, já teve a honra de compartilhar uma época com todos esses incríveis seres humanos. Todos eles foram ótimos teóricos para minha introdução no tema, me ensinaram e me trouxeram informações preciosas. Mas o que continuava me incomodando, era não encontrar um indivíduo que tivesse realizado na prática, uma escola que representasse o papel de desenvolvimento humanizado.

Dr. Almir e Drª Zilda Del Prette, as maiores autoridades em Habilidades Sociais no Brasil

Foi quando, por acaso (e muito acaso mesmo), conheci a Escola da Ponte, localizada em São Tomé de Negrelos, Portugal. Posteriormente, conheci o Projeto Âncora, localizado em Cotia/SP. Nas duas, apesar de suas essências serem muito distintas, identifiquei diversas semelhanças que me encantaram. A principal delas, é um ser humano espetacular, criador da Escola da Ponte e colaborador no Projeto Âncora, conhecido como Professor José Pacheco. Para não cometer injustiças, quero disponibilizar o link de uma palestra do professor, onde ele demonstra como realizou seu trabalho por lá, quais foram os métodos empregados e que garanto, irá encantar todos vocês assim como me encantou.

Educação para o Envolvimento com José Pacheco

 

About author

Gustavo é graduado em Gestão Comercial, com pós-graduação em Habilidades e Competências Socioemocionais na Educação Básica e pós-graduação em Gestão Escolar, todas as graduações pela Universidade Positivo do Paraná. É CEO da Icapiedu. Plataforma gamificada que utiliza de uma metodologia socioemocional para realizar diagnósticos nas escolas e fortalecer o protagonismo dos alunos que sofrem com o bullying no ambiente escolar. Por fim, é um entusiasta por uma educação nacional de qualidade e com a cara do Brasil.
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